sábado, 5 de maio de 2007

(não autobiográfico)
...Vi-me em cada um deles e em todos ao mesmo tempo. Não conseguia ver nada. Estaria eu cego pela hipocrisia social? Esperei uma boa meia hora e nada vi. A desilusão de nada ver era na verdade uma alegria. O meu cepticismo tinha razão de ser. A desilusão não era mais do que a confirmação de que estava certo. Não obstante, percebi que aquela angústia não me ia deixar ileso. Mara acreditava naqueles espelhos. Eu não! Como poderíamos continuar se não acreditávamos nas mesmas coisas? Como poderíamos coexistir se percepcionávamos as coisas de forma diferente?
Resolvi dar uma segunda oportunidade àquele trio esotérico. Despi-me. Tirei todas as minhas roupas. Deixei-me ficar assim por um instante. Relaxei. Abri a minha mente. Lembrei-me do bilhete que dizia que os espelhos enganavam o guardião da alma. Sorri. Debrucei-me espelhos adentro. Os meus olhos paralisaram. Tinha começado o transe. Nunca conseguirei explicar o que senti naquela altura. Todo o meu corpo envolveu-se no seu reflexo. O reflexo dominava então o eu do lado de cá dos espelhos. Aquele reflexo era o poder da minha real essência sobre o corpo humano e disciplinado pelo querer do todo social. Entrei numa dormência. Não conseguia mexer uma única fibra muscular do meu corpo. O olhar paralisado do espelho absorvera a minha capacidade de locomoção… apenas a mente fervilhava. Ardia-me o cérebro. A minha cabeça parecia em vias de explodir. Não havia, apesar de tudo, ansiedade ou medo. Nada. Apenas uma calma sedutora ponteada pelos acessos explosivos da minha mente. Depois disso veio uma luz negra brilhante. O que é uma luz negra brilhante? Não sei. Não julguei ser possível. Mas era isso que via. Uma espiral negra que cativava o meu olhar paralisado. O preto brilhante ofuscara-me a mente. Já não haviam explosões. Apenas crescentes de intensidade lúdica. Subitamente a espiral e o meu reflexo desapareceram. Não desapareceu a minha incapacidade móbil. No que era o centro da espiral começaram a aparecer imagens de há muito. Imagens que julgava esquecidas. As imagens eram cenários à minha volta. Eram demasiado reais para serem apenas imagens. Eram recordações salientes. Eram imagens com relevo consciente. Naquele transe percorri toda a minha vida. Sufoquei nas lembranças da minha gestação. Atravessei as fases descritas por Freud. Eram reais as fases. Não eram apenas mais uma teoria. Compreendi o meu falhanço ...
...seus lábios. Nos espelhos apenas os seus lábios ternos e ao mesmo tempo devassos pelo beijo de néctar. Não conseguia ver a sua cara. Não conseguia ver o seu corpo. Apenas uns lábios que pairavam naquela espiral negra que começava a desaparecer. Estaria a minha lição aprendida ou a espiral negra apavorara-se com a luz do dia alto, que entrava com coragem janela dentro? Doíam-me os músculos. Nada mais natural. Permanecera paralisado durante horas a fio. O transe transformara-me num homem estátua. E da mesma forma que um homem estátua, não manifestei a mínima reacção. Não mexi um só músculo externo. Penso que até o meu coração diminuiu a intensidade dos seus batimentos. Naquele transe a energia fluíra naturalmente, remetendo para segundo lugar o bombear mecânico daquele órgão.
Calei os espelhos. Calei a minha consciência. Optei por não me manifestar sobre o que vira. A espiral negra engolira consigo o meu maior segr(m)edo...

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